A 3 de fevereiro de 1990, fui atropelada por um carro. Pensei que morria naquele dia em que, depois de um almoço com os meus pais, iria a uma reunião de escoteiras, pela qual ansiava e à qual acabaria por não ir. Lembro-me de tudo e mais alguma coisa. Voei pelo ar com o embate e depois… fiquei numa posição estranha no chão. Levaram-me de ambulância. Parti o fémur e a cabeça. Levei 12 pontos na cabeça e fiquei numa cama de hospital por 2 meses, com a perna imobilizada e em tração. Não chorei, mas estava assustada. Fui entregue a um sistema hospitalar pouco humanizado, apesar de ter sido bem cuidada. Ainda hoje agradeço a todos os profissionais de saúde que cuidaram de mim, num momento crítico da minha vida. Com 11 anos tinha ficado confinada a uma cama de hospital, privada de muito e de muitos. Sem grandes comodidades, sem internet nem computador. Valiam-me os livros, a rádio, umas bonecas. Não podia ir à casa de banho, nem à rua apanhar sol, entre tantas coisas. Foi um pesadelo vivido e muito solitário. Muitas vezes só me tinha a mim e aos meus pensamentos, naqueles dias longos. Não fiquei traumatizada, mas não me esqueço de nada. Nem das coisas boas, como ter conseguido entreter-me a coser roupa de bonecas, de dançar ao som da música (só da cintura para cima!) ou de viajar dentro do mundo dos livros. Aceitei, aceitei tudo o que podia e não podia fazer ao longo desses dois meses. Estava distante do meu quarto, da minha escola, dos meus amigos, das minhas atividades. Da minha vida em família. A distância não retirava a importância de me sentir ligada ao meu mundo. A distância não retirava a importância de sentir o afeto da minha família. Nem a de ser uma criança que precisava de brincar e de viver. Adaptei-me e reinventei-me, como todas as crianças fazem tão bem.
Há 30 anos atrás, os médicos deram-me alta na véspera do meu aniversário. Não me esqueço da sensação do sol a bater-me na cara naquele dia 30 de março, do prazer do banho demorado que tomei depois de sair do hospital. De vestir a roupa que quis para o meu dia especial (um conjunto moda Porfirios jaqueta e mini-saia, com camiseiro às cornucópias). De poder abraçar e brincar com a minha querida e doce irmã de quem tantas, tantas saudades sentia. Foi um dia feliz, em que vi o mundo com um novo olhar, curioso, ávido e expectante.
Fiquei contente por voltar à minha vida, à escola e a estar com a minha família todos os dias. A dormir na minha cama e a ver a minha irmã a toda a hora. Sorria só por poder ir à casa de banho como uma pessoa normal ou por voltar a jogar à Sirumba, mesmo de muletas. Soube dar valor a coisas que já me eram garantidas.
Sobrevivi, ao que foi uma sorte dentro do azar. Já passou. Olho para trás e fui uma guerreira, à minha maneira. E correu tudo bem.
Tenho-me lembrado muito desta história, neste momento em que vivemos. Precisamos de aceitação, de coragem, precisamos também de esperança e de um novo olhar, para aproveitarmos ao máximo o que temos, hoje. Temos saudades uns dos outros, tantas, tantas. De um abraço forte e um beijo demorado nos pais, avós, irmã, sobrinhas (minhas ricas) e naquelas pessoas especiais... Temos saudades da rotina habitual, de estarmos com colegas de trabalho, da escola dos pequeninos. Temos saudades da vivência em comunidade, de trocar dois dedos de conversa de uma forma próxima, só porque sim.
É certo que em criança não tinha as preocupações de adulta, o receio pela segurança dos que me são próximos. Que vivíamos num ritmo mais relaxado e que os pais de então sabiam trazer algum pragmatismo à vida. Mas neste mundo rápido e global, tenho as novas tecnologias que minimizam a distância, tenho o WhatsApp, o Webex e as redes sociais. Tenho vídeos de ginástica e até aulas em tempo real. Tenho concertos ao vivo e videochamadas quando me apetece. Posso criar uma nova rotina, temporária, divertida, flexível, que me permita sobreviver, no meio desta exigência de conciliar trabalho com família, com tarefas domésticas intermináveis, num multitasking ambicioso demais. Quero muito que a narrativa dos meus pequeninos, sobre o “Tempo em que ficámos em casa por causa do COVID” seja acompanhada de um sentimento positivo, sobre a forma como conseguimos viver esta fase. Mais do que as atividades que fazemos com as nossas crianças, mais do que todos os trabalhos de casa, e conseguirmos manter a casa impecável, o que eles irão recordar um dia será o ambiente que se vive em casa e na família, durante este período “Covidesco”. Acredito que tudo irá correr bem. Que esta esperança nos alimente a coragem de fazer o que tem de ser feito, com paciência e respeito pelos que travam esta batalha, 30 anos depois desta minha memória. E que esta miúda de 11 anos continue a inspirar-me nestes momentos.
[Soraia Jamal é mãe de um menino de 9 anos e uma menina de 5. Psicóloga na Força Aérea Portuguesa, é também Mestre em Educação de Infância, tem feito investigação e organiza programas ligados à Parentalidade Consciente. Membro do NCAB, com formação em mediação de conflitos.]