Artigo de Susana Alves, mediadora cultural.

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Ao longo do tempo tenho-me apercebido da importância da promoção, na criança, da autonomia, não só de movimentos mas, e principalmente, de pensamentos. A arte é um mundo onde diferentes ideias, até sendo opostas, podem coexistir. Sabemos que as crianças são pessoas pequenas que estão a iniciar o seu percurso até chegarem à idade adulta. Quando temos o prazer de acompanhar o crescimento de uma, precisamos estar conscientes de que o nosso contributo influencia o ponto de chegada desse caminho. Se procurarmos facilitar o crescimento de um ser livre, feliz e independente, capaz de fazer as suas próprias escolhas, é fundamental procurar desenvolver a sua capacidade de criticar e, também, a de conseguir ouvir críticas. Saber concordar e saber discordar, com igual interesse e dedicação, são componentes muito importantes. Outro ponto, igualmente imprescindível, é ouvir a voz das crianças, dar-lhes voz, dar-lhes lugar à fala, sem com isso lhes darmos um mundo desorganizado e sem limites. É importante que ao dar voz também se ecoe o que dizem, fazendo-os pensar no que dizem, mais do que se deslumbrar com o que dizem.

Eu penso que encarar a vida (ao longo de todas as suas fases) como um processo criativo, um caminho poético de pesquisa, experimentação, aprendizagem, criação, invenção, reflexão, traz-nos grandes vantagens a vários níveis. As aprendizagens mais significativas são aquelas que fazemos por iniciativa própria, respondendo a alguma questão ou necessidade específica que nos surge no caminho. São aprendizagens contextualizadas, concretas. E é a partir delas que depois podemos partir para a abstração, generalização, teorização. Este caminho do fazer até ao pensar no que se faz tem sido maioritariamente percorrido no sentido inverso, o que a meu ver é uma pena. Gostava de ver alterações profundas a este nível e proponho que se repensem as aprendizagens ditas obrigatórias, generalizadas e especializadas, principalmente nos anos iniciais de aprendizagem. Quem gostou de ser obrigado a ler um livro na escola? Quase que aposto que ninguém, nem mesmo aqueles que são por natureza amantes da leitura. Não quero com isto defender a “balda”, a falta de rigor ou a mediocridade, antes pelo contrário, apenas questiono o caminho que construímos e que tem sido praticado para lá chegar.

Outro aspeto que gostava de salientar aqui, e para tal recorro à referência do grande psicólogo do desenvolvimento, Howard Gardner que, em 1983, desenvolveu a teoria das inteligências múltiplas, onde expõe a ideia de que não temos uma só inteligência mas sim múltiplas (lógico-matemática, musical, corporal-sinestésica, naturalistas, intrapessoal, interpessoal, verbo-linguística, espacial-visual). Esta teoria também avança que cada indivíduo tem o seu perfil composto pela complementaridade de cada uma destas áreas num determinado nível específico, mais ágil ou mais limitado em cada uma. Se olharmos para a escola, é fácil perceber que o foco está essencialmente virado para o raciocínio, a inteligência cognitiva - a cabeça - esquecendo que esta faz parte de um corpo cheio de potencial, com diferentes sentidos e formas de expressão. É importante experimentar e desenvolver as diferentes linguagens que o corpo permite, muito além da verbal, oral, escrita ou lógico-matemática. A arte, e nunca como hoje temos a sorte de a ter, é um campo muito vasto e diverso, com enorme potencial integrativo, aglutinador, transversal, transdisciplinar, inclusivo. Na minha opinião, é fundamental entender que, por exemplo, o desenho, muito além de uma técnica que se pode dominar ou utilizar com talento, pode ajudar a pensar, a dança pode ensinar um conceito, a pintura pode libertar emoções, ou vice-versa, cada qual desperta em cada um capacidades e aprendizagens, de uma forma muito própria e adaptada ao momento em que é experimentada.

Outro ponto interessante para debruçar o pensamento é o cruzamento das disciplinas, quer artísticas, quer do conhecimento, pois parece-me urgente que saia da teoria e do papel (refiro-me à recente diretriz da flexibilidade curricular) para ser posto em prática. O mundo não se apresenta a nós de forma fragmentada, ele aparece-nos como um todo. Para o acolhermos é importante fazê-lo também como um todo, um ser completo. Qualquer momento, qualquer contexto, qualquer lugar, qualquer tema pode ser um motor para a aprendizagem. Neste tempo que ficámos em casa, com a difícil tarefa de mesclar tarefas e papéis (escola, família, trabalho, tudo na mesma sopa), percebemos que se torna muito complicado gerir tudo, principalmente, porque vemos cada tarefa como pertencente a um mundo específico, especializado e independente. Se pensarmos nas nossas idas à mercearia percebemos que no ato de comprar uma maçã não temos de passar pelo departamento da matemática, depois no de português e em seguida no de biologia. O que nos acontece, é que temos de acionar os vários conhecimentos em simultâneo para poder cumprir o objetivo inicial que nos motivou a lá ir - a compra da maçã. Ainda que para consolidar algum conteúdo específico de cada um destes passos, possa ser necessário isolá-lo e observá-lo mais à lupa, penso que (principalmente em anos mais precoces da aprendizagem) estas “observações à lupa”, especializadas, podem acontecer de forma mais pontual, sendo o curso normal da aprendizagem mais assente numa observação mais abrangente, ao contrário do que normalmente acontece, pois esta permite uma melhor compreensão e facilita a aplicação desse conhecimento, ou seja, há que refletir sobre a forma como apresentamos às crianças os conteúdos todos fragmentados em disciplinas, quase como que os convidando a comer a espinha em vez do peixe.

Por último, gostava de referir ainda a importância de não se procurar a perfeição e de se dar espaço ao erro, pois ele é dos maiores potenciadores de aprendizagens. Desde bebés que utilizamos esta técnica de tentativa-e-erro para o desenvolvimento das aprendizagens. É quando entramos para a escola que, dia a dia, ano após ano, vamos perdendo a fluidez da utilização de certas ferramentas, às quais em pequenos recorremos com facilidade e intuição, liberdade. É fundamental que esse espírito livre e de explorador e descobridor do mundo não se perca e para isso é preciso alimentá-lo.

O projeto Especificalistas - grupo específico de ação crítica - é um exemplo, entre muitos outros, a que poderia ter recorrido para ilustrar como se pode pôr em prática o que disse até aqui. Este é um projeto do Lugar Específico, que envolve crianças, dos 7 aos 12 anos, que se encontram de forma regular para descobrir sobre: o que é isto de fazer críticas de arte?! Uma vez que existe um deserto nesta área, no que toca à arte para a infância, sentimos que faz muita falta um lugar onde a crítica aconteça, ainda mais se esta for pensada e elaborada pelo próprio público-alvo. Aqui queremos proporcionar pensamento e conteúdo crítico feito por e para crianças. Vemos espetáculos, exposições, património local e outros objetos artísticos, entrevistamos artistas e curadores e, depois, escrevemos uma crítica que é gravada num podcast para todos poderem ouvir (podem espreitar os que já foram realizados aqui). Além das visitas onde temos contacto direto com a arte e os artistas, temos sessões de discussão e esclarecimento: contextualização do que se vai ver e ouvir e depois discussão e questionamento. Nestas sessões, discutimos critérios, decidimos em conjunto o que é importante observar e registar, o que mexe connosco, o que nos move enquanto público, o que move o artista para criar... Temos oportunidade de fruir, refletir, escrever, falar, opinar, argumentar, escutar e partilhar o que aprendemos e sentimos. Aqui não nos ficamos pelo gosto ou não gosto. A ideia é ir mais além, é ver o que está para lá da forma, da imagem ou da superfície. Procuramos fomentar o espírito crítico, a argumentação, a observação atenta e a partilha de experiências, sensações e saberes. Por fim, as nossas reflexões/conclusões ganham a forma de textos (muitas vezes apenas mentais) que depois se traduzem em locuções para podcasts, totalmente feitos pelos jovens críticos que aqui têm a oportunidade de trabalhar a oralidade, a escrita, a argumentação, a dicção, de forma lúdica e com um objetivo concreto. Experimentamos falar para a rádio e para que nos oiçam. Este exercício de falar para alguém que não está a ver o mesmo que nós é um desafio difícil, mas muito interessante e enriquecedor para quem o experimenta. Aos sábados podem ouvi-los na Rádio Miúdos, um projeto que vale a pena espreitar. O texto deste artigo surge de um convite que muito me emocionou, pois aconteceu justamente em consequência da audição de um dos programas dos Especificalistas na rádio.

Em 2019 fundei o Lugar Específico - entre arte e educação, um espaço em Lisboa (Alameda) dedicado à criação de projetos de intervenção em arte, educação e mediação cultural, onde as ferramentas e o pensamento artístico/criativo estruturam o desenho das ações artístico-educativas ou culturais com vista a promover o desenvolvimento pessoal (físico, cognitivo, sensorial, etc.) através da arte. Na nossa metodologia a abordagem é transversal, transdisciplinar, multidisciplinar e pode focar-se num ou em qualquer outro tema. Não se trata tanto do QUE se fala ou aborda, mas sim de COMO se faz essa abordagem. Um dos projetos que desenvolvemos serviu de mote a este convite e é a partir dele que vos escrevo. Na base do pensamento que aqui partilho, está a minha experiência vivida em 15 anos de trabalho na área da mediação cultural, uma formação em psicologia educacional, formações complementares em educação e arte contemporânea e de leituras apaixonadas, feitas em momentos chave, à medida das necessidades e dos desafios que fui encontrando. Não sou uma “teórica especialista no assunto”, sou uma apaixonada pelo tema e investigo por conta própria a partir da experiência prática. Gostava que lessem estas minhas palavras como uma partilha e um convite à reflexão. Caso concordem ou discordem com o que aqui digo, gostava muito de vos ouvir e de crescer em conjunto com as vossas opiniões. Tinha tanto para dizer sobre o papel da arte na educação que a maior dificuldade foi mesmo focar e restringir o que gostava de dizer ao limite de caracteres disponível. Ficaram aqui algumas questões relacionadas com o espaço que existe entre a arte e a educação e em como a primeira pode contribuir para o sucesso da segunda. Estes são alguns dos aspetos em que tenho pensado e tenho procurado agir e que considero que merecem a nossa maior atenção.

Muito obrigada por terem chegado até aqui, por me terem feito companhia ao longo desta viagem. Espero que a partilha seja de alguma forma inspiradora. Fico à escuta!

Susana Alves

Mediadora cultural com formação em Psicologia Educacional e Educação Pela Arte (ISPA). Fundadora do Lugar Específico - entre Arte e Educação, fundadora e membro da administração da ReCoSE (Rede dos Colaboradores de Serviços Educativos) e co-fundadora da Cooperativa SOU Largo.

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