Para além da família mais direta e dos atendimentos diurnos – cuja importância no processo de ensino-aprendizagem, em termos latos, nunca é demais sublinhar – ainda existem outros espaços, porventura menos referidos, mas que desempenham um papel fundamental na formação das crianças.

Refiro-me aos restantes familiares, mais distantes (avós, tios, primos), aos amigos, aos vizinhos, ao espaço «rua», enfim, a todas as situações informais em que a criança contacta com outras pessoas e delas «bebe» informação, conhecimentos e saberes. E exemplos e modelos, também.

As crianças interagem com tudo o que existe – seres humanos, animais, plantas e objetos inanimados. Com o ambiente e com elas próprias. Estão, por assim dizer, num processo quase constante de partilha de «terabytes», porventura recebendo mais do que dão, mas potenciando esse fluxo de dados, que vão da mera informação sobre um determinado assunto até coisas bem mais complexas, como valores, comportamentos e atitudes reflexivas. 

Ao contrário do que se pode pensar, este processo de «enchimento do disco rígido» (leia-se, do cérebro) e aquisição de competências e apetências, não tem como fonte exclusiva as formas mais estruturadas de organização das pessoas – no caso concreto das crianças, a família nuclear e os atendimentos diurnos. Não se conhecem estudos pormenorizados sobre o assunto, dado que é impossível quantificar, de uma maneira cientificamente séria, qual a influência de determinado «input» no resultado final ou, dito de outro modo, até que ponto o que alguém diz, faz, comunica, censura, aplaude, etc., resulta num valor, numa atitude, numa intenção ou num comportamento por parte da criança. Sabemos, isso sim, que há pessoas «chave» neste processo e, obviamente, os pais e educadores são os maiores modelos educativos. Sabemos também que há coisas que são mais determinantes do que outras – veja-se um exemplo típico que é, ao falar-se tanto da influência nefasta da violência nos ecrãs, estarmos a esquecer que um ato de violência em casa, seja física, seja apenas verbal, uma humilhação, um simples remoque cínico ou despropositado, pode valer mais em termos de «marca para o futuro» do que muitas cenas de jogos, filmes ou de séries ficcionais. A outro nível, também andamos, às vezes, a culpabilizar as casas de fast-food por darem cabo da saúde dos nossos filhos, quando eles vão lá apenas esporadicamente, e onde comem mal e desajustadamente é, muitas vezes, nas nossas próprias casas.

Falemos então dos espaços informais: é sabido, por exemplo, que, nas escolas, o espaço de «recreio» e de «intervalos entre aulas» é onde os alunos trocam informações preciosas, discutem problemas e modelam comportamentos. Nas crianças mais pequenas, além do que recebem dos adultos que cuidam diretamente delas, o contacto com outras crianças e outros adultos revela-se fundamental. As noções mais vastas de respeito, dignidade, regras democráticas, humanismo, tolerância, ecologia, entre outras, sedimentam-se através do que os mais pequenos veem no dia-a-dia. Claro que é importante o que lhes é transmitido pelos pais e educadores, mas para assimilarem e interiorizarem comportamentos assertivos e adequados, de uma maneira instintiva, para se preocuparem com os outros sem ser necessário estar a dizer-lhes, para serem bem-educados e cidadãos bem formados, é de maior importância o exemplo do vizinho do lado, da pessoa que vai na rua, do automobilista com que se cruzam na passadeira, da televisão que veem, dos debates políticos em que, frequentemente, ninguém deixa falar ninguém, na maneira como o Estado trata os mais desfavorecidos e mais vulneráveis, nas atitudes de intolerância étnica, religiosa ou até clubística, etc.

Para se construir cidadãos humanistas e democratas, no verdadeiro sentido das palavras, é preciso que a matriz teórica dos ensinamentos acerte com a realidade prática. Se o nosso vizinho, ao entrar no elevador, nos cumprimenta e diz «bom-dia»; se o condutor pára e, com um sorriso, faz sinal para passarmos na passadeira; se a senhora que vende fruta pergunta aos pais da criança como está a família, faz um carinho ao miúdo e fala do seu reumático; se as notícias televisivas são dadas desta ou daquela forma, tudo isto vai ter uma enorme influência, positiva ou negativa, na sedimentação do que, pais e educadores, repetem vezes sem conta sobre o que são «as regras do jogo». Tal e qual num qualquer desporto (por maioria de razão no «jogo da vida»), se o árbitro e os jogadores se cingem às normas tudo faz sentido. Se aldrabam, desrespeitam, fazem batota, gritam, manifestam-se indecorosamente – e tantas vezes estes comportamentos acabam ainda por ser tolerados, validados ou mesmo exaltados - começamos a entender que o «patuá» teórico não passa mesmo disso: teoria não aplicável. Regras para furar. Leis para tornear. Não admira, pois, que as crianças se possam tornar cínicas, falsas ou fingidas… e mesmo mentirosas e golpistas.

A «sociedade», como gostamos de designar essa entidade abstrata, somos todos nós. Os nossos comportamentos, mesmo nas coisas simples e comezinhas, são constantemente exemplos e aferições para as crianças, quer as nossas, obviamente, quer as dos outros. Na rua, no prédio, no supermercado, no centro comercial, no parque infantil, na praia, no café... em tantos e tantos lados, todos os intervenientes se influenciam uns aos outros. O processo de ensino-aprendizagem, quer nas vertentes mais académicas e de conhecimentos científicos, quer nas áreas sociais e relacionais, ou seja, na vivência do dia-a-dia, é constante. É bom não o esquecermos, para sermos concomitantemente mais exigentes com o mundo que nos rodeia, com a qualidade dos espaços e das coisas, com a intolerância e espírito crítico que deveremos ter relativamente a comportamentos inadmissíveis, errados e desajustados. Sem moralismos e com o «coração aberto» que deve pautar as relações entre as pessoas, mas não esquecendo que o fechar os olhos a situações injustas e iníquas pode ser o mesmo que dizer aos nossos filhos: «podem, afinal, fazer como eles».

Não. Não devem nem podem!

Mário Cordeiro

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