É a primeira vez, na história da humanidade, que há tantos nonagenários física e mentalmente ativos. Reunimos três histórias de quem entrou nesta década e tem algo em comum: sentir-se bem na sua pele, nutrir entusiasmo pela vida e inspirar outros, sem temer os desafios deste tempo.

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Existências mais longas resultam, confirma a ciência, da evolução social, impondo uma mudança de paradigma. “Envelhecer é um processo extraordinário, em que nos tornamos na pessoa que devíamos ser”.

Em 2030, segundo as estimativas das Nações Unidas, Portugal será o terceiro país mais envelhecido do mundo, a seguir ao Japão e Itália. Hoje, quase um em cada 100 residentes tem entre 90 e 99 anos (um em cada 95, se incluirmos os centenários).

Na casa de Ivone Melo, no concelho de Loures, há uma varanda que parece um jardim, um altar com fotografias de gente querida, uma cadela e vários pássaros. Viúva há mais de quatro décadas e a morar sozinha há 25 anos, Ivone vai mostrando a sala com livros, peças de arte africanas e sofás forrados por ela. 

Ao longo dos anos, Ivone continua a levar “uma vida normal” e explica: “Não sou de estar a comer e a ver televisão, quando não há o que fazer, invento.” Lembra-se de ser criança e de subir às árvores, de pregar partidas e de pedalar entre Queluz e a Amadora, e do namoro não aprovado pela família que a enviou para o Norte por uns tempos. A troca de correspondência após responder a um anúncio, “por brincadeira”, acabou com aliança no dedo e “tempos muito felizes” em Lourenço Marques (atual Maputo), Moçambique. Esteve lá há dois anos, com uma das filhas, e chorou quando teve de regressar. “Quero lá voltar quando chegar aos 100!”

Fazer o que se gosta

O dramaturgo irlandês George Bernard Shaw dizia que envelhecemos porque paramos de brincar.

Presença incontornável no teatro, televisão e cinema, a atriz Eunice Muñoz completou 92 anos, a 30 de julho do ano passado. Introvertida assumida, surpreendeu todos com a sua entrada em direto no Instagram (com a ajuda da neta) na edição especial de ‘Como É Que o Bicho Mexe?’, do humorista Bruno Nogueira, na madrugada do 25 de Abril. “Não organizo o meu dia, as coisas que me aparecem, eu faço-as; as coisas que me apetece fazer, faço-as.” Lê muito, gosta de trabalhos de cozinha, “não a grande cozinha porque não sei fazer”, e de momentos de contemplação: “Acho que estou na idade de olhar profundamente para cada objeto, dá-me um imenso prazer”.

Sempre que possível, continua em palco: “É agradável ir à televisão e fazer um pequeno papel, enfim, uma amostra do que eu poderia fazer se tivesse outra idade”. A palavra “desafios” poderá assustar muita gente, mas não a ela: “Escute, eu toda a minha vida fiz mudanças, a minha própria profissão é uma mudança constante; portanto, mudanças são de uma vida inteira e de quase 80 anos de carreira”. Aqui chegada, atribui importância a coisas nem sempre valorizadas quando se é jovem: “Agora sou capaz de parar para ouvir os pássaros e dar-lhes de comer. Dou muito mais importância à Natureza, desde que tenho esta idade”.

Esta idade é também o que fazemos dela até lá chegar. O cirurgião António Gentil Martins, 90 anos, pioneiro na cirurgia de separação de pares de gémeos siameses, não duvida de que “fazer o que se gosta” é essencial para se chegar aos 90, entre outros fatores: “O primeiro terá sido a genética, a chamada ‘boa cepa’, seguindo-se a forma como levámos a juventude até à idade adulta”. E os valores transmitidos na educação, da solidariedade ao respeito pelos outros, passando pela “defesa intransigente daquilo que sinceramente acreditamos ser verdade” e a união familiar.

A idade cronológica não nos define

"Não somos imortais, mas também não sabemos qual o tempo máximo de vida", afirma Maria João Valente Rosa, autora do livro ‘Um Tempo sem Idades’. Salienta que o aumento do tempo médio de vida deve ser entendido como mais tempo para se viver (em vez de se ser velho por mais tempo). O paradigma social tem de mudar. “Envelhecer é um processo diferencial que ocorre antes dos 90, 60 ou 50; estaremos a distorcer a realidade se não olharmos a heterogeneidade e as cambiantes sociais das pessoas mais velhas”.

A demógrafa refere-se às várias idades: a psicológica (como nos sentimos subjetivamente) e a biológica que pode regredir com mudanças no estilo de vida e que é influenciada pelos tempos.

"No futuro as pessoas serão mais qualificadas, mais próximas da tecnologia e com consumos mais diversificados". Para a docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, “a idade cronológica não nos define”. De resto, as sociedades mais envelhecidas foram as que mais avanços fizeram no combate às doenças e na planificação de tempos longos, como o Japão. “Estar entretido dá-nos sentido, valor social ou reconhecimento na comunidade, algo que só poucos conseguem”, diz.

Fonte: https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2020-11-15-os-jovens-de-90-an...