As histórias, os contos e os livros existem já na cabeça das pessoas. Só falta arranjar a «chave» que abrirá essa «gaveta» e que fará sair à luz do dia essa criação, bem como o embrulho que dará ao conjunto o seu aspeto atrativo – pelo menos, estou firmemente convencido disto.
Todas as crianças adoram jogar com as palavras, inventar nomes, cantar cantigas, contar piadas, fazer trocadilhos, às vezes inclusivamente desenvolver linguagens completas, com regras gramaticais e um vasto vocabulário (a maioria das vezes cifrado, para grande irritação dos familiares e dos adultos em geral). As palavras dão-lhe gozo.
Os pais, em vez de ficarem alarmados ou irritados, deverão apoiar ao máximo esta fase do desenvolvimento infantil, encorajando a curiosidade da criança, o jogo imaginativo, a escrita e a leitura, não apenas a obrigatória que se enquadra nas actividades escolares, mas também a que se faz por prazer.
A atitude da família e os hábitos que existem em cada casa são essenciais. A escrita será um fenómeno tanto mais fácil quanto a criança a considerar natural e normal, num processo que não deverá criar frustração ou ansiedade.
Ouvir e ler histórias facilita em muito a escrita, porque se cria o hábito de ouvir palavras, de as conhecer e de brincar com elas, compondo-as, misturando-as, dando-lhes sentido e forma, além de facilitar o discurso narrativo.
Para preparar uma criança para escrever, há várias pequenas coisas que os pais podem fazer, independentemente da sua preparação e gosto literário:
- Ler para a criança, desde muito cedo (a bem dizer, desde sempre). Não só os vossos filhos apreciarão a história e habituar-se-ão às palavras e à sua forma e sentido, como também será uma óptima ocasião de passarem uns agradáveis momentos com eles.
- Mesmo quando as crianças já sabem ler, os pais podem continuar a ler para elas, seja livros mais avançados, seja voltando aos «velhos favoritos».
- Estimular o gosto (e o respeito) pelos livros – ofereçam livros, peçam aos vossos familiares e amigos que, em vez de inundarem a casa com roupas que deixam de servir ou brinquedos que quase apodrecem nas prateleiras sem ninguém lhes pegar, dêem às vossas crianças livros. Farão dos livros coisas fundamentais e elementos a acarinhar. Mais: nunca deixem as crianças rasgar e maltratar livros e revistas, mesmo que sejam aquelas que nós próprios deitamos fora... mas as crianças não sabem a data delas, e se não aprendem a respeitar esse «repositório da memória», ligarão pouco ao acto de escrever essa memória.
- Não se preocupem se os vossos filhos puserem de parte, a princípio, os livros mais densos para ler banda desenhada. É uma fase e só se prolongará se os pais desistirem. A maturidade das crianças cresce com elas e, paralelamente, a escolha dos livros, e a BD é uma excelente porta de entrada para o universo da leitura.
- Ao escolher um livro, deve-se ouvir a opinião da criança, embora os pais tenham também que orientar a diversidade e a evolução da escolha dos livros. Todavia, se a criança preferir voltar a um livro antigo ou repetir o da véspera, não há qualquer problema nem se deverá impor regras a esse respeito.
- Ler devagar e pausadamente, dando a entoação e as «especiarias» que faz apreciar ainda mais o que está escrito. Façam existir cumplicidade, o que se consegue teatralizando o texto e manifestando afetos (piscando o olho, sorrindo, etc.) sempre que as passagens ou as histórias são mais engraçadas – importa que as crianças entendam que as letras, as palavras e as histórias têm vida e são reflexos da vida.
- Interromper a leitura sempre que necessário, para responder às perguntas e dúvidas, e eventualmente reler algumas partes. A criança tem que se sentir um elemento activo no processo e não um mero espectador a quem ninguém liga.
- Quando estiverem a ler para o vosso filho, essa é a atividade prioritária. Não interrompam a torto e a direito, nem o façam com a televisão ou telefones ligados. É uma falta de respeito, primeiro para a criança, depois para os livros e seus autores.
Quando a criança começar a escrever (ou antes disso, até, quando ela se começa a interessar pelas letras e pela fusão e organização das letras em palavras), é bom organizar histórias, apoiando assim, com elementos concretos, a enorme criatividade que surge nesta altura da vida.
Este processo pode tomar várias formas, desde pedir à criança que conte uma história e os pais a escreverem (mesmo que não sejam os melhores escritores do mundo e mesmo que isto se faça com lentidão – dá mais tempo para a criança imaginar).
Se a criança perder demasiadamente o fio à meada, então poderão reler-lhe o que ela já escreveu, mas as sugestões do enredo deverão ser a última das armas e sempre feitas à laia de hipótese. Perguntar «então o que é que aconteceu depois?» ou «E afinal o que é que aconteceu ao pirata?» (quando o mesmo ficou esquecido algures, numa linha mais acima), ajudarão a criança a organizar os personagens e a ir buscá-los à «gaveta» adequada. De qualquer forma, pais, não se esqueçam de que a história não é vossa – é deles. Se intervêm demasiado as crianças acabarão por falar cada vez menos e se calar.
Outra forma de abordar o assunto é propor uma «parceria» ao vosso filho, imaginado uma história em que cada um – seja rotativamente, seja «anarquicamente» –, dá o seu contributo. De vez em quando relê-se o que já está. A imaginação e a criatividade poderão ser expressas na forma de «peça de teatro», dado ser porventura mais fácil para a criança escrever diálogos e inventar heróis e personagens. O resultado final poderá ser ensaiado num fim-de-semana, com os amigos.
Claro está que nenhuma realização pode permanecer ignorada, sobretudo a de autores deste tamanho – o que ficar escrito deverá (sempre com o consentimento do autor, claro) ser publicitado, nem que seja afixando o texto na porta do frigorífico, preso com magnetes. Obviamente, se quiserem podem inventar formas mais trabalhadas de divulgar a escrita, até chegar a um «jornal de família», fotocopiado e mostrado a todos, com grande gáudio dos leitores, reforço da auto-estima da criança e..., evidentemente, os pais «babados».
Passada esta fase, o material deverá ser guardado religiosamente – dali a uns anos todos gostarão de rever essas histórias.
Muito do que as crianças escrevem é na escola, sendo essencial valorizar o que ela escreve e os pais interessarem-se por isso. Quantos pais pedem às crianças para ler as suas composições e redações? Quantas pedem que leiam as pequenas histórias que, ao longo do dia, escreveram? Espero que muitos. Estou certo de que muitos farão isso, conscientes da importância presente e futura dessa atitude.
Escrever é engraçado. É divertido. É bom. E é uma excelente oportunidade de passar uns momentos agradáveis e tranquilos. Cada criança é diferente da anterior e o grau de interesse pelas diversas coisas também. O primeiro passo deve ser adoptar uma atitude de «exploração», tentando saber que tipo de resposta a criança dá. A umas haverá que entusiasmar, a outras quase que «refrear» o entusiasmo de escrever.
Os pais não devem pressionar as crianças nem querer uma «produção desenfreada» ou escrever «a metro». A demasiada insistência só leva a que uma atividade que se quer espontânea, se transforme numa obrigação e que a criança se sinta forçada a dar contas e ganhe o medo de falhar.
Um outro aspeto relaciona-se com os erros ortográficos que quase todas as crianças a princípio fazem. Será disparate, por exemplo, ao ler um poema ou uma história, estar sempre a interromper a dizer «aqui enganaste-te!», «aqui trocaste esta letra!». «Isto não se escreve assim!». Acabamos por não dar atenção ao conteúdo, perdidos nesses pormenores importantes, mas, no caso concreto, secundários. Diferente será se o vosso filho pedir ajuda – nesse caso devê-la-ão dar, sem que isso represente uma intromissão.
Há várias maneiras de interferir pedagogicamente, sem serem os pais a escrever a história, designadamente lançar adivinhas, desafios e projectos de enredos sobre os quais a criança escreverá. Convém que sejam situações que obriguem a pensar e a imaginar (eventualmente situações que raiam o non-sense).
Para o sucesso e para a autoestima, é fundamental a maneira de reagir dos pais. Sem elogios fáceis, mas sem desinteresse, a atitude dos pais deverá ficar no meio termo, sugerindo rigor sem cair no hipercriticismo.
Sempre pela positiva, dever-se-á elogiar e só depois fazer as correções, voltando a elogiar novamente. Mesmo quando o material é fraco, há sempre alguma coisa a valorizar, sobretudo os aspectos mais originais e únicos.
Para isso, contudo, é preciso tempo e disponibilidade. E interesse. E valorizar as consequências positivas a curto, médio e longo prazo.
Escrever é essencial. Ler é um complemento da escrita, e vice-versa.
Vamos começar já hoje. Agora mesmo. Os tempos de confinamento ajudam a isso. Pais: os vossos filhos contam convosco. E a literatura, também.
O Aga Khan Education Board convida-vos a partilhar questões, comentários, ideias ou propostas de temas a abordar através do endereço [email protected]