Quando pensamos em consumismo, provavelmente a primeira imagem que nos vem à cabeça não é uma criança. Mas talvez seja benéfico refletir sobre quando começam realmente os nossos instintos consumistas… Quantos de nós já não nos deparámos com um quarto de criança onde quase não se vê o chão? A criança fica aborrecida porque não encontra o objeto com que quer brincar e nós ficamos chateados porque depois de pensarmos que “refila de barriga cheia”, e não se contenta com o tanto que tem, ainda pisamos um lego à saída. Devido à quadra festiva em que nos encontramos, esta temática ganha ainda maior relevância.
Vivemos hoje numa sociedade de consumo imediato, onde em cinco minutos de redes sociais somos expostos a um sem fim de estímulos diferentes, com dezenas de produtos que são agora fabricados em massa e a baixo custo. Mas nem sempre foi assim. O crescente estudo da psicologia do desenvolvimento da criança, no início do século XX, começou a dar-nos pistas sobre a forma como as crianças são, pensam e agem ao longo dos anos de vida. Estudos sobre as preferências das crianças começaram a surgir e a meio do século já se ganhava a noção de que os mais novos podiam introduzir produtos na família, dando-se cada vez mais importância aos desejos e necessidades dos mesmos. No fim do século houve um maior reconhecimento da criança como consumidora ativa (e começou a perceber-se o poder que as crianças têm como influenciadoras dos pais), dando-se atenção à compreensão e emoção que têm em relação aos bens consumíveis. Começou uma jornada de investimento em ações de marketing que tornassem as crianças consumidoras leais e a longo prazo. As empresas começam, aliás, a procurar formas de manipulação mesmo antes de nascermos.
Mas será que as crianças são mesmo vítimas passivas do marketing ou já têm a capacidade de perceber o efeito persuasivo da publicidade? A visão dos especialistas em marketing é de que as crianças são seres ativos, competentes e poderosos. E são… mas será que devemos usar estas suas capacidades para as influenciar a comprar?
Dos dois aos sete anos de idade as crianças têm dificuldade em distinguir a realidade da fantasia apresentada nos anúncios publicitários, acreditando que tudo aquilo que vêm é verdade e que o seu ponto de vista é único. É nesta fase que os seus desejos e preferências emergem. Dos quatro aos sete anos a criança percebe que é um ser com necessidades e desejos próprios, ganhando mecanismos cada vez mais sofisticados de convencer os pais a comprar. Dos sete aos doze anos as crianças são já capazes de distinguir entre a sua opinião e a dos outros, mas a sua interpretação daquilo que vêm nos media é ainda algo distorcida. Por volta dos doze anos a opinião dos pares é a que ganha mais importância, sendo que, a par da publicidade viral e em meios eletrónicos, passa a ser o maior método de marketing: pressão social. A publicidade tem a audácia de nos fazer pensar (mesmo que muitas vezes esse processo seja inconsciente) que seremos mais felizes e desejados pelos nossos pares, e essa é a arma mais poderosa do marketing. São-nos constantemente vendidas ideias irrealistas de sucesso, de felicidade, de padrões de beleza.
Mas o envolvimento excessivo nesta teia de informação fabricada pode comprometer a nossa saúde mental a longo prazo, tendo efeito por exemplo na gestão da raiva, autoestima, comportamentos aditivos e muitos outros aspetos. Não deixemos que os nossos filhos cresçam a achar que são mais ou menos que os que os rodeiam por aquilo que possuem. Esta ideia de que os bens materiais é que nos preenchem emocionalmente e nos fazem sentir aceites, afastam-nos daquilo que realmente importa: as tarefas relacionais. Muitas vezes passamos mais tempo em frente a um ecrã e a passear num centro comercial, do que a aproveitar o dia lá fora, a conversar, a cheirar flores ou a ver o mar. O consumismo desenfreado oferece uma gratificação imediata que torna a regulação emocional da criança dependente de um bem material, reduzindo a sua tolerância à frustração, que não conseguirá combater se houver sempre uma resposta rápida aos seus caprichos.
E qual o nosso papel como pais, na forma como as crianças vivem este novo mundo consumista? Afinal, somos nós que temos o poder económico e não elas. Se consomem, foi porque o permitimos. Quantos pais não sentem a necessidade de compensar os seus filhos com bens materiais, devido a todo o tempo que passam separados, devido ao trabalho e à escola? Queridos Pais: o tempo que gastaríamos a ir comprar esse brinquedo, gastemo-lo com os nossos filhos. Vamos oferecer-lhes antes isso. Tudo o que as crianças querem é a nossa atenção e para elas terá muito mais valor aquela meia hora extra que lhes proporcionamos de atenção total, do que qualquer brinquedo. Essa meia hora pode ensinar-lhes muito mais do que o brinquedo novo.
A verdade é que não podemos fugir do marketing, ele está em todo o lado, mesmo onde não imaginamos. Não podemos controlá-lo, mas podemos tentar controlar a forma como as nossas crianças o vêm. A educação para os media deve ser feita desde cedo e prende-se com a capacidade de analisar e avaliar a informação que nos é transmitida, sendo uma forma de tentar proteger as nossas crianças e jovens do impacto negativo que a sociedade de consumo pode vir a ter sobre elas. Além de monitorizar o tempo que a sua criança passa no ecrã, poderá ser boa ideia passar esse tempo com ela, ajudando-a a filtrar e interpretar de uma forma mais real aquilo a que é exposta.
Depois desta reflexão, é importante ressalvar que a ideia deste texto não é que de repente não compremos nada aos nossos filhos. Ser fundamentalista não costuma ser boa ideia. Tal como nós adultos, também há desejos das crianças que podem e devem ser satisfeitos. O nosso convite é no sentido de haver uma maior consciência dessas compras, dos motivos pelos quais as fazemos e, principalmente, que nunca substituam a oportunidade de relação.
Nesta quadra festiva, depois deste ano tão desafiante, devemos todos pensar no que queremos oferecer àqueles de quem mais gostamos. Devemos e podemos ser mais conscientes e sustentáveis naquilo que consumimos. Podemos escolher oferecer brinquedos que possam acompanhar a criança em vários estádios do desenvolvimento, fazer presentes artesanais (que ganham toda uma nova importância) e ainda, e talvez o melhor que tudo, oferecer experiências, para que possamos estar juntos.
Vamos acreditar que não somos aquilo que temos. Somos simplesmente, e tanto… aquilo que somos.
Rosário Carmona e Costa e Débora Carvalhosa - Psicologia Clínica
Belong - Instituto de Desenvolvimento e Saúde
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Fontes e sugestões de leitura:
Buckingham, D. (2007). Selling childhood? Children and consumer culture. Journal of children and media, 1(1), 15-24.
Carmona e Costa, R. (2017). iAgora? Liberte os seus filhos da dependência dos ecrãs. Lisboa: Esfera dos Livros.
Cook, D. T. (2009). Knowing the child consumer: historical and conceptual insights on qualitative children's consumer research. Young Consumers.
Lindstrom, M. (2012). Brandwashed–Os truques de marketing que as empresas usam para manipular as nossas mentes. Lisboa: Gestãoplus Edições.
Šramová, B. (2014). Media literacy and marketing consumerism focused on children. Procedia-Social and Behavioral Sciences, 141, 1025-1030.