Quando já todos nos tínhamos deparado com a inevitabilidade das tecnologias como parte integrante do mundo atual, 2020 fez-nos o favor de reforçar a ideia. Em plena pandemia mundial, muitas foram as restrições iniciais e, consequentemente, um confinamento obrigatório. Precisámos de todos os ecrãs à nossa disposição para saber as últimas notícias sobre a situação, para falar com aqueles de quem somos próximos e não esquecer o teletrabalho ou as infinitas aulas online. Trocámos as janelas com vista para a rua por “janelas” com vista para o mundo digital. Com isso, muitas famílias sofreram as consequências de passarem o tempo absorvidos pelos estímulos dos ecrãs. Retira-se desta experiência a ideia de que tudo isto foi necessário, que nos permitiu admitir alguns benefícios, mas também trouxe muitas desvantagens.
Para os mais pequenos, a infância é um período de extrema importância para o seu desenvolvimento: a fase em que constroem as bases dos funcionamentos motor, cognitivo e socio-emocional. Aqui, o mundo exterior exerce um papel de extrema importância ao fornecer o estímulo necessário a que este desenvolvimento seja positivo pelo que fica fácil de perceber que esta é uma tarefa conjunta em que a parentalidade e o ambiente familiar têm muito a dizer relativamente ao equilíbrio desejado. Estratégias parentais positivas e ambientes familiares estimulantes, organizados e com materiais de aprendizagem, podem trazer à criança benefícios cognitivos, emocionais e comportamentais, tornando-se importantes preditores do desenvolvimento da criança e do funcionamento familiar.
Contudo, as inúmeras oportunidades que advêm de estarmos permanentemente ligados aos ecrãs originam uma fonte de distração: no universo da família e da parentalidade, mais tempo conectado às tecnologias significa menos tempo conectado com os filhos (com todo o mundo real, na verdade). A interferência das tecnologias provoca, nos pais, menor tempo em atividades livres de ecrãs, como passeios ou diálogos com os filhos, e causa redução da responsividade e carinho na interação com a criança, que por sua vez desencadeia uma tendência para comportamentos disruptivos na tentativa de ganharem a atenção parental.
Na grande maioria dos casos, quando existe um elevado uso dos ecrãs por parte dos pais, existe também um maior uso por parte das crianças tornando, no final de contas, mais difícil de compreender a causa dos sintomas que se observam (desde problemas físicos como a obesidade ou psicológicos como problemas de atenção, de comportamento, hiperatividade, agressividade).
Formas de contornar este desequilíbrio passam, por exemplo, pelo estabelecimento de limites para o tempo de uso de tecnologias, privilegiando o tempo em família que vai modelar o comportamento da criança relativamente aos ecrãs; impor a regra “sem tecnologias” nas horas da refeição, pois estas são um espaço rico para a interação pais-criança, quer seja a ajudar a cozinhar, a pôr a mesa, a própria refeição ou o lavar a loiça. Estar presente na vida das crianças é o fator que mais rapidamente permite contrabalançar o aspeto digital cada vez mais presente na nossa vida. Por isso, dedicar pelo menos 15 minutos de atenção exclusiva aos filhos, diariamente, com interesse, livre de crítica e distrações, pode ter um efeito benéfico na perceção positiva da parentalidade e no desenvolvimento da criança e da relação pais-criança.
É muito significativo pensar que na quase totalidade de pedidos de consulta ou novos casos recebidos está presente uma dupla muito forte: as queixas relativamente ao comportamento dos filhos e a tudo o que desagrada aos pais a par de um lamento, por parte dos pais, acerca do pouco tempo que dedicam aos filhos, de como sentem que a sua vida profissional invade a vida familiar, de como eles próprios se sentem assoberbados pelos horários, obrigações e agora as incertezas da pandemia. Mas é ainda mais bonito ver como quase todos estes sintomas e desconfortos se desvanecem quando convido à dieta dos ecrãs, a desligar, a ganhar mão e rédea na forma como organizamos o nosso tempo e distribuímos a nossa atenção. É tão comovente ver como aquela criança que nos é descrita como difícil de controlar ou aquele adolescente pintado como muito opositor e agressivo, se transformam e perdem toda a patologia quando o ambiente familiar lhes proporciona mais momentos de interação positiva, de partilha e, sobretudo, de não deixar nas mãos deles a decisão acerca de quanto tempo estão ligados. Esta é, pode e deve ser, uma decisão dos pais e um dos melhores limites que podemos impor aos nossos filhos (e a nós próprios). Esta é, pode e deve ser, a regra que mais traz frutos: na relação, no desempenho, na socialização e na autoestima.
Rosário Carmona e Costa e Tiago Ferreira, Psicologia Clínica, Instituto Belong
Fontes e sugestões de leitura:
Carmona e Costa, R. (2017). iAgora? Liberte os seus filhos da dependência dos ecrãs. Lisboa: Esfera dos Livros.
Attai, P., Szabat, J., Anzman-Frasca, S., & Kong, K. L. (2020). Associations between Parental and Child Screen Time and Quality of the Home Environment: A Preliminary Investigation. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(17), 6207.
Shaffer, A., & Obradović, J. (2017). Unique contributions of emotion regulation and executive functions in predicting the quality of parent–child interaction behaviors. Journal of Family Psychology, 31(2), 150.
Kildare, C. A., & Middlemiss, W. (2017). Impact of parents mobile device use on parent-child interaction: A literature review. Computers in Human Behavior, 75, 579-593.
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